Especialistas esclarecem quatro dúvidas dos consumidores sobre maior mistura de etanol
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou na segunda-feira, 17, que a pasta vai propor o aumento da mistura de etanol anidro na gasolina dos atuais 27% para 30%. A proposta será levada ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) ainda este ano.
O anúncio foi feito durante a apresentação dos resultados de testes feitos pelo Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), que comprovaram que a mudança não prejudica o desempenho dos veículos.
Segundo Silveira, o aumento da parcela de etanol na mistura da gasolina traz várias vantagens, entre elas:
Redução de preço de até R$ 0,13 por litro da gasolina, o que também contribuiria para o controle da inflação
O Brasil deixaria de importar 760 milhões de litros de gasolina por ano e poderia até vir a exportar o combustível
Aumento de 1,5 bilhão de litros por ano na demanda por etanol
Para atender a essa demanda, seriam necessários R$ 9 bilhões em investimentos no setor, que resultariam na geração de mais 25 mil empregos diretos e indiretos
Aumento do uso de combustível renovável geraria uma redução de 1,7 milhão de toneladas nas emissões de gases do efeito estufa por ano, o que equivaleria a retirar 720 mil veículos das ruas
Mas faz sentido falar em redução de preços quando o etanol anidro nas usinas de São Paulo está saindo a uma média de R$ 3,25 o litro, enquanto a gasolina nas refinarias custa R$ 3 por litro? E por que o Brasil segue importando gasolina até hoje, se é exportador de petróleo, matéria-prima do combustível?
A reportagem conversou com especialistas para esclarecer essas e outras dúvidas sobre o plano do governo de aumentar a mistura de etanol na gasolina para 30%.
Por que o Brasil adiciona etanol à gasolina?
Tudo começou em 1975, quando a ditadura militar criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), com o objetivo de diminuir a dependência brasileira das importações de petróleo, em meio a uma grave crise no setor, iniciada dois anos antes.
Em protesto contra o apoio dos Estados Unidos a Israel durante a Guerra do Yom Kippur, os países árabes reunidos na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) limitaram a produção de petróleo, levando à escassez e a uma explosão no preço da matéria-prima.
A partir da criação do Proálcool, desde 1976, o governo tornou obrigatória a mistura de etanol anidro à gasolina, oscilando inicialmente entre 10% e 22%. O percentual da mistura foi sendo elevado gradualmente ao longo dos anos e, desde 2014, a lei prevê um mínimo de 18% e um máximo de 27,5% de etanol anidro na gasolina.
Em outubro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei do Combustível do Futuro, que estabeleceu que o governo pode elevar a mistura de etanol à gasolina para até 35%, desde que haja viabilidade técnica para isso. A elevação do percentual dos atuais 27% para 30% é então um primeiro passo nesse sentido.
Críticos ao aumento da mistura citam a menor autonomia dos veículos com o uso do etanol, devido ao menor poder calorífico do combustível em relação à gasolina, e afirmam que o etanol compete com a produção de alimentos no campo, reduzindo a oferta e tornando a comida mais cara para os brasileiros endash; o que é refutado pelos representantes do setor sucroenergético.
Com mais etanol, vai cair o preço da gasolina?
eldquo;Com o E30 [mistura de 30% de etanol anidro à gasolina], o preço da gasolina na bomba vai cair. Isso é redução da inflaçãoerdquo;, disse o ministro Alexandre Silveira, na segunda-feira, estimando uma queda de preço de até R$ 0,13 por litro da gasolina com a mudança.
Mas, para a analista de combustíveis da consultoria StoneX, Isabela Garcia, o avanço da safra de cana-de-açúcar e seu impacto sobre o preço do etanol devem ser o maior fator na queda de preço dos combustíveis esperada à frente endash; e não o aumento da mistura.
Garcia observa que, atualmente, o etanol anidro está sendo vendido a uma média de R$ 3,2449 por litro nas usinas de São Paulo, segundo o indicador de referência do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq-USP.
O valor está acima do preço de referência da gasolina A isenta de etanol, vendida a R$ 3,0308 na Refinaria de Paulínia, em São Paulo.
eldquo;É porque estamos no momento de entressafra [da cana], mas entendemos que, nos próximos meses, com a nova safra, os preços do etanol anidro devem voltar a ficar em patamares mais baixos, inclusive abaixo da gasolina, o que seria um fator a diminuir os preços naturalmenteerdquo;, diz Garcia.
A analista observa que outro fator relevante na formação do preço da gasolina C endash; mistura da gasolina A com o etanol anidro endash; é a incidência de impostos.
Isso porque há uma parcela grande de impostos cobrada na gasolina A e uma parcela reduzida para o etanol anidro. eldquo;Então uma maior mistura de etanol anidro implica uma incidência menor de impostoerdquo;, observa.
Mesmo com uma alta esperada para a carga tributária do etanol anidro a partir de maio, de R$ 0,13 para R$ 0,19 por litro, a diferença entre o etanol e a gasolina é tão grande que a carga tributária seguirá sendo menor com o aumento da mistura, diz a analista.
Para a gasolina, considerando a incidência de PIS/Pasep, Cofins e Cide, a carga tributária federal sobre a gasolina A chega a R$ 0,89 por litro.
eldquo;Mas é importante ter cautela quando se fala de diminuição de preços por conta da mistura, porque, novamente, já é uma tendência nos próximos meses a queda do etanol anidro, isso já baratearia a gasolina, independente se tiver aumento da mistura ou nãoerdquo;, destaca a analista.
A qualidade da gasolina vai piorar?
Segundo o diretor de combustíveis da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), Rogério Gonçalves, o grupo de trabalho criado pela entidade para discutir possíveis problemas decorrentes do aumento da parcela de etanol na gasolina levantou algumas preocupações.
Para carros flex endash; aqueles preparados para rodar a gasolina ou etanol hidratado, e que atualmente representam mais de 90% das vendas de veículos novos no Brasil endash;, a única preocupação seria um pequeno aumento de consumo, por conta da diferença de poder calorífico entre os dois combustíveis que compõem a gasolina C.
eldquo;O etanol tem 70% do poder calorífico da gasolina. Então, por isso, o veículo flex poderia ter um ligeiro aumento de consumo [com o E30]erdquo;, diz Gonçalves. Isso acontece porque, devido ao menor poder calorífico, é preciso mais etanol do que seria necessário de gasolina, para produzir a mesma quantidade de energia.
Já para veículos movidos exclusivamente a gasolina endash; que representam cerca de 12% da frota total do país, em sua maioria automóveis antigos ou importados, além da maioria das motocicletas em circulação no país endash;, as preocupações levantadas pelo grupo de trabalho incluíam se a mudança traria prejuízos à dirigibilidade. Ou seja, se haveria alguma falha sensível ao motorista, como o carro engasgar na hora de sair ou hesitar no momento de acelerar, o que pode ser perigoso na ultrapassagem.
Outra preocupação dizia respeito a ataque aos materiais, com possíveis efeitos negativos para materiais metálicos ou elastoméricos (as borrachas) que têm contato com o combustível. eldquo;Baseado nos testes que foram realizados pelo Instituto Mauá de Tecnologia, com diversos veículos, eles não identificaram problemaserdquo;, observa Gonçalves.
Conforme o IMT, os testes não demonstraram mudanças significativas no consumo ou potência dos veículos. Foram testados 16 automóveis e 13 motocicletas, em três etapas: ensaios a frio, a quente e de emissões. Entre os objetivos, estava testar a capacidade de partida em baixas temperaturas, de estabilização em marcha lenta e o comportamento da aceleração.
Segundo Gonçalves, os proprietários de veículos importados que tiverem dúvidas se seu veículo está plenamente adaptado para o maior teor de etanol podem ainda utilizar a gasolina premium, que vai ser mantida com 25% de etanol na mistura.
Ele observa, porém, que a gasolina premium é cerca de 40% mais cara do que a comum, então não é uma solução para todos os motoristas.
Conforme o diretor da AEA, outra dúvida levantada pelo grupo de trabalho diz respeito a outros segmentos que utilizam a gasolina como combustível, como o náutico, aeronaves experimentais e ultraleves e máquinas e ferramentas motorizadas, em grande parte importadas.
A Marinha e alguns Corpos de Bombeiros, por exemplo, utilizam algumas embarcações movidas a gasolina em operações de resgate. E o ambiente marinho, muito úmido e salino, cria um problema de corrosão de equipamentos, que é agravado pela presença de etanol na gasolina.
eldquo;Isso não foi citado [pelo ministro de Minas e Energia e os técnicos do IMT na apresentação de segunda-feira], mas nós fizemos um relatório e enviamos todas essas questões ao governoerdquo;, completa.
Por que o Brasil ainda importa gasolina?
Segundo o ministro Alexandre Silveira, entre as principais vantagens da adoção do E30 seria reduzir a dependência brasileira da importação de combustíveis. eldquo;Com o E30 nos tornaremos em definitivo independentes da importação de gasolina. Esse é um ganho incalculável para a soberania nacionalerdquo;, disse o titular da pasta de Minas e Energia.
eldquo;Vamos deixar de necessitar de importar 760 milhões de litros de gasolina e vamos, ao contrário, ter condição de exportar, porque com 1,5 bilhão de litros de etanol produzidos, vamos ter gasolina sobrando para exportaçãoerdquo;, completou.
Isabela Garcia, da StoneX, explica que o Brasil continua importando gasolina até hoje, mesmo após se consolidar como um exportador de petróleo, porque há uma limitação no parque brasileiro de refino.
eldquo;Vemos as refinarias brasileiras operando em uma taxa [de ocupação da capacidade instalada] bastante elevadaerdquo;, diz Garcia. eldquo;A produção de gasolina aumentou nos últimos anos, mas não o suficiente para acompanhar o crescimento da demanda internaerdquo;.
Ela completa: eldquo;Há um descasamento do ritmo de crescimento de produção e demanda, que acabou aumentando a vulnerabilidade externa para o mercado de gasolinaerdquo;. A analista ainda lembra que, no diesel, a dependência de importações é ainda maior.
Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em 2024, a produção nacional de gasolina A (pura, ainda sem a adição de etanol anidro) correspondeu a 90% da oferta interna, com a importação suprindo os 10% restantes supridos.
Já no caso do diesel A (ainda sem a mistura de biodiesel), as importações representaram 25% das vendas no ano passado. eldquo;Mas é importante ressaltar que o mercado de gasolina é muito específico no Brasil, porque há um competidor e substituto direto, que é o etanol hidratadoerdquo;, destaca Garcia.
eldquo;Tem anos em que o consumo de hidratado está muito alto, e aí diminui a necessidade de importar gasolina, porque as pessoas estão preferindo o consumo do etanol à gasolina, como foi o caso do ano passadoerdquo;, observa a analista.
Em 2024, foram vendidos no Brasil 133,1 bilhões de litros de combustíveis automotivos líquidos, segundo a ANP. No caso da gasolina C (já com a mistura de etanol anidro), foram 44,2 bilhões de litros, uma redução de 4% com relação a 2023. Já o etanol hidratado teve 21,7 bilhões de litros em vendas, um crescimento de 33,4%.
Quanto à mudança na mistura, Garcia observa que ela realmente deve levar a uma substituição da importação de gasolina A pelo etanol anidro produzido internamente. eldquo;Estimamos que 1 bilhão de litros de gasolina A deixariam de ser consumidos, caso a mistura seja implementada já a partir de abril. Então pode diminuir de fato a exposição internacionalerdquo;, calcula.